Quando o corpo fala mais alto



Ontem fui ao teatro assistir a peça “O Despertar da Primavera”. Eu ainda fico pasma quando tenho a oportunidade de conhecer obras de pessoas que foram muito além do seu tempo. Esse é o caso de Frank Wedekind, autor da peça. O seu texto é tão intenso que demorou 80 anos para ser executado em sua plenitude. A peça foi publicada em 1891 e imediatamente proibida pelas autoridades. Em 1906 foi feita uma nova tentativa, com alguns cortes, mas logo após as primeiras apresentações foi suspensa mais uma vez. Como se isso não bastasse, em 1908 foi vetada toda e qualquer manifestação pública sobre “O Despertar da Primavera” com punições que poderiam levar os infratores à prisão. 

Em 1912, Wedekind conseguiu montar uma versão em alemão na Inglaterra, mas a apresentação teve que ser privada; restrita a poucos. Em 1917 ele conseguiu uma autorização para uma versão em inglês nos Estados Unidos, mas um dia antes da estreia o espetáculo foi novamente vetado. A primeira montagem, na íntegra, só foi acontecer em 1974, na Inglaterra, onde foi intensamente aclamada pela crítica. Frank Wedekind já não habitava mais esse mundo, para presenciar estrondoso sucesso. 

Vocês devem estar se perguntando, o que tem nessa peça para causar tanta polêmica? Nenhuma novidade. Mas devo confessar que os assuntos ainda são tabus em muitos meios depois de mais de 100 anos de sua criação e que Wedekind se arriscou ao escrever sobre isso. Assuntos abordados: gravidez na adolescência, sexo, suicídio juvenil, pedofilia/estupro, hipocrisia e desinformação do jovem. Naquela época Wedekind abordava como a falta de diálogo e informação poderiam levar os adolescentes a cometerem erros estúpidos (como a gravidez precoce) e  como a dificuldade dos pais/sociedade em ensinar e dialogar sobre algo tão natural poderia ser fatal. A peça é de um realismo incrível e conta com um grupo de jovens em seu elenco, o que confere uma veracidade ao texto dada a ingenuidade com que encaram os problemas. Algumas cenas são tão fortes, que a protagonista da peça teve que ser emancipada pelos pais (ela tem 16 anos). 

Apesar desses temas serem triviais hoje em dia (quem nunca teve ou conheceu uma colega grávida no colégio?), ao assistir à peça, mesmo tendo em mente que já sei tudo (ou quase tudo) sobre os temas abordados, vejo como evoluímos muito pouco. Hoje, em pleno século XXI, a paixão ainda é pecado. Como diz o própria peça “quem me deu à luz, deu a escuridão”. Ainda hoje pais e sociedade têm dificuldade em abordar determinados assuntos com seus filhos, a exemplo de “como eu nasci?”. A pergunta é respondida com outras perguntas, mitos, historinhas que só fazem confundir a cabeça do jovem. Como se fosse pecado. Lembro que na minha adolescência, minhas amigas ficavam abismadas como eu era bem informada sobre sexualidade. Não que eu fosse avançada para época. Mas meus pais, ao se verem com três filhas acharam que a informação era a melhor arma. Eu tentava repassar algumas coisas para as minhas colegas, achando que sabia tudo. Mas na verdade, eu não sabia nada. Tenho plena certeza de que meus pais fizeram o melhor que puderam. O máximo, dado a criação que receberam. Na verdade, acho que eles se superaram e conseguiram superar o ciclo vicioso da criação. Contudo, quando eu tiver os meus filhos, mesmo tendo sido beneficiada pela informação, acredito que ainda assim terei que superar outras tantas amarras da minha criação. Por exemplo, “quando o corpo resolve falar, só que mais alto”. Ninguém ensina nada sobre isso (principalmente para mulheres). Ainda vivemos em um mundo onde o natural, bonito, se torna proibido, sujo. O desejo, por exemplo. Na verdade, acho até que me arrisco ao tentar escrever sobre isso aqui. Numa espécie de histeria ou cegueira coletiva a sociedade prefere repetir padrões que “garantam” o mínimo de controle de uma determinada situação ou que seja mais fácil para lidar. É mais fácil omitir determinados assuntos, do que tratá-los com franqueza ou até mesmo ensinar sobre isso. 

Me lembro como hoje que eu, com toda minha informação, me vi super envergonhada em uma aula de jazz. Eu tinha uns 14 pra 15 anos quando minha professora tentava fazer com que eu entrasse no ritmo da dança. Para encarnar o personagem, eu tinha que soltar o ar da forma correta, mas não conseguia. Determinada hora, minha professora parou a aula e resolveu fazer um exercício comigo, Mandou eu puxar o ar e soltar, relaxando e gritando, como um orgasmo. Fiquei pasma! Primeiro por que não fazia ideia do que era um orgasmo (no significado mesmo, nunca tinha ouvido essa palavra!). Segundo, porque ela falou de um jeito que me fez achar que não era nada bom. Achei ela libertina demais e decidir não voltar mais às aulas. Só fui aprender sobre orgasmo na revista Capricho, já que a aula de reprodução sexual da escola se restringia à parte técnica. Meus pais também não foram tão longe. Na verdade, não consigo imaginar um pai contando para seu filho o que é o orgasmo. Tem que ter muito peito! Me lembro que quando casei, minha mãe tentou ter uma daquelas conversas comigo. Quando eu senti o clima, cortei logo! Acho que ela ficou aliviada. Sabia que àquela altura, eu já estava instruída. Já minha tia, que foi a primeira das irmãs de minha mãe a se casar, contou-me como foi terrível a conversa antes do seu casamento.  Minha vó não teve coragem de encarar e mandou a cunhada no lugar. Esta deu à minha tia uma caixinha de lenço de papel e disse para minha tia deixar do seu lado da cama, no chão, na noite de núpcias. Minha tia não entendeu nada e  perguntou para quê ela iria usar aquilo. Perguntou também se não tinha nada mais importante que ela devesse saber e aprender. A cunhada da minha avó disse que aquilo era tudo e que na hora certa ela iria descobrir a utilidade do lenço de papel. Ainda alertou minha tia que independente do que acontecesse naquela noite, ela deveria apenas se levantar da cama ao amanhecer. Nem preciso dizer que minha tia ficou apavorada! 

Esse assunto hoje ainda é tão complexo que eu até tenho dificuldade de escrever sobre isso. Por mais que tentemos tratá-lo de forma natural, tal qual é, por mais que falemos alto, tentando internalizar, nem sempre dá. Eu me assusto quando a sociedade coloca cada vez mais leis restritivas para algo que é tão natural. Tentamos corrigir o bárbaro, bizarro, podando o normal. Parece que depois de um tempo de avanços estamos voltando atrás, como nos tempos dos meus pais. A única diferença é que hoje os jovens dispõem de internet e outras ferramentas onde podem colher informações que nem sempre são as corretas. A sociedade insisti em ignorar o que não se pode ignorar. “Quando o corpo resolve falar mais alto”, não há muito mais o que fazer. E em alguns casos, só resta rezar. 

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