Crônica: amor e ancestralidade

Hoje ela faz 99 anos.

Nascida em 1922 viveu durante os períodos mais difíceis e obscuros da história.

Criada apenas pela mãe, em um tempo em que isso era um escândalo, casou-se e teve 9 filhos.

Em uma época em que as mulheres não podiam fazer muito, recusou-se a ensinar as filhas a cozinhar. Um pequeno ato de rebeldia reforçando para as filhas que a melhor alternativa era estudar.

Mas foi com ela que eu aprendi a fazer bolo, na cozinha onde sempre estava. E descobri o prazer em raspar a vasilha com o resto de massa batida. Com o passar do tempo me ensinou outros pratos, sempre com calma e sem pressa. Para cozinhar tem que ter alma leve, dizia, ou a comida não presta.

Perdeu um filho. Perdeu a fala. Me mudei para sua casa. Foram dias tão confusos, um misto de dor com amor. Desse tempo lembro de quando, sentada no sofá, me esperava chegar. Com um sorriso que não chegava aos olhos, perguntava como foi meu dia, me abraçava e me acolhia.

Seu colo sempre foi um dos meus lugares preferidos. Macio, cheiroso. Onde eu colocava minha cabeça para receber um cafuné e reclamar da vida. Mal sabia que nada sabia!

Perdeu o marido. Perdeu o chão. Na época eu não tinha noção do tamanho do buraco que crescia dentro do seu coração.

Então eu olho para ela e a vejo tão linda. Quanta coisa carregou dentro do peito e quanto carinho distribuiu na sua vida. E penso se esse negócio de ser fortaleza, que ensinaram para gente é uma furada. Porque ela não vem de graça. A conta é muito alta.

Da última vez que a vi não pude me aproximar, nem sentir seu cheiro. Mas fiquei tão feliz, porque ela se lembrou de mim. E com suas mãozinhas tremendo, me soprou um beijo.

Feliz aniversário vovó! Feliz dia! Fecho os meus olhos e mesmo de longe sinto o seu cheiro, o seu toque, o seu beijo. Carrego comigo parte de você. E quando me olho no espelho, sempre te vejo.

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